Vamos Fazer do Rio Distrito Federal Novamente
Escrito por Guilherme Pires de Mello
Publicado originalmente no blogue Brasil Decide, a 6 de agosto de 2020.
Recentemente, as redes sociais foram pegas de sobressalto com a viralização do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que solicitava a criação de um segundo Distrito Federal na cidade do Rio de Janeiro, apresentado pelo ignóbil deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), famoso por, dentre outros episódios pitorescos, quebrar a placa em homenagem à vereadora Marielle Franco, cruelmente assassinada por milicianos em março de 2018.
Em sua justificativa, o parlamentar escreveu: “a saída da capital (em 1960) gerou efeitos perversos ao Rio e o antigo estado fluminense” e a federalização da cidade seria “a melhor saída para superar o crônico problema de insegurança nacional” além de ser “um passo de fundamental importância prática e simbólica para a materialização do slogan ‘Mais Brasil, Menos Brasília’ — síntese do programa de governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro”.
O Projeto apresentado vai além da PEC148/19 da deputada federal Clarissa Garotinho, que propõe a divisão do Fundo Constitucional com a cidade do Rio de Janeiro por um período de dez anos, como reparação aos danos causados pela transferência do Distrito Federal em 1960 para a região do planalto central.
A existência de um segundo Distrito Federal não seria uma excentricidade brasileira. Países como Alemanha (com Bonn, sua antiga capital, hoje cidade federal), Rússia (com São Petersburgo), Chile (com Valparaíso) e Coreia do Sul (Seul e Sejong) também possuem status diferenciado para suas cidades federais.
A PEC ainda sugere a transferência (ou melhor, a devolução) do Congresso Nacional para os cariocas, facilitando “a prestação de contas” e aproximando a população de seus políticos.
Seria a rocambolesca proposta mais um episódio pitoresco do parlamentar? As redes sociais certamente pensam que sim, mas, suspeito, bem mais em razão do histórico de seu emissor do que pela proposta em si.
Uma simples leitura da PEC sugere uma proximidade, bem mais do que simplesmente palpável, com a proposta-texto apresentada em 2017 pelo professor Christian Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).
Fica claro que o ensaio do professor Lynch serviu bem mais do que uma simples inspiração ao “nobre” deputado. O que nem de longe é algo ruim, muito pelo contrário. Os dois artigos publicados por ele na Insight Inteligência são de leitura obrigatória a qualquer pesquisador que deseja compreender as raízes do estado de anomia em que se encontra o município do Rio de Janeiro e a região da “velha província” fluminense.
O estado de anomia permanente
Em 2018, o Estado do Rio de Janeiro sofreu uma intervenção federal na pasta de Segurança Pública, a primeira aplicação na história do art. 34 da Constituição Federal, justamente em seu 30º aniversário. Três anos antes, em dezembro de 2015, o governo estadual foi obrigado a decretar estado de emergência na saúde pública, às vésperas dos Jogos Olímpicos.
O governo federal foi impelido a criar um gabinete de crise, além de fornecer equipamentos e remédios. Seis hospitais federais foram disponibilizados à rede estadual. Nas últimas duas décadas, o município do Rio de Janeiro acolheu, além das Olimpíadas, a final da Copa do Mundo de Futebol, o Pan-Americano e a Jornada Mundial da Juventude, megaeventos com notável participação da União.
Em 2006, o governo federal foi obrigado a federalizar quatro hospitais municipais em razão da crise na saúde da cidade. Desde sua transferência nos anos 1960, a União tem sido obrigada a, de tempos em tempos, intervir na região por ela abandonada, como forma de mitigar os problemas ocasionados pela sua ausência.
De 1970 a 2011, o Rio de Janeiro foi, entre os Estados da federação, o que ostentou maior perda relativa no PIB nacional, cerca de -33,2%, conforme o IBGE. Dentre as captais, a carioca apresentou também a maior perda, -60,64%.
A capital do Estado também fica atrás da média nacional no número de empregos formais, registrando, no período de 1985 a 2012, um aumento tímidos na faixa dos 66,9%. Enquanto o Brasil registrava um aumento de 131,6% no mesmo período observado.
O desastre da experiência do “Estado Minotauro”, criado em laboratório pela ditadura militar em 1975, no auge de sua repressão, por vontade do presidente-general Ernesto Geisel como forma de contrapor a influência de São Paulo, já era antecipado pelo economista liberal Eugênio Gudin, em artigos datados de 1973. Para Gudin, “a união de um Estado do Rio empobrecido com uma Guanabara [atual município do Rio de Janeiro] combalida pelo esvaziamento decorrente da transferência da capital para Brasília” só poderia terminar catástrofe. E não deu outra.
O desenvolvimento do atual Estado do Rio de Janeiro se difere de seus demais parentes próximos (São Paulo e Minas Gerais). A cidade nunca foi dependente do desenvolvimento de uma estrutural regional produtiva. Seu grande indutor sempre foi a presença da alta burocracia estatal e sua capacidade de aglutinar recursos, serviços e investimentos (SOBRAL, 2013).
O processo de formação de suas elites jamais cultivou uma cultura verdadeiramente regionalista, mas, sim, nacional. Sua política local sempre funcionou ora como espelho da nacional (Moreira Franco, Marcello Alencar, Sérgio Cabral), ora como seu oposto (Carlos Lacerda, Leonel Brizola, Garotinho), em conflito com o governo federal, representando o seu projeto alternativo para o Brasil.
A transferência do Distrito Federal para Brasília tem seu projeto original presente desde a constituinte de 1891, porém apenas como expressão da visão demofóbica das elites regionais, que viam o Rio de Janeiro como excessivamente “cosmopolita” e propício a rebuliços sociais, diferente do “verdadeiro povo brasileiro”, interiorano e iminentemente passivo (LYNCH, 2013).
A presença da União era o principal indutor da economia da cidade, mas também da “velha província” fluminense, dependente dos investimentos do governo federal e, principalmente, do financiamento do capital mercantil. Ela seria capaz de gerar recursos em escala crescente que se espalhariam tanto para a cidade do Rio de Janeiro como para o Estado.
Sua transferência, sem qualquer indenização à região, manifestaria, então, um “marco de reversão” ou “bifurcação” que não foi corrigido pelos governos subsequentes. Alguns, como a gestão do almirante Faria Lima, acabaram por aprofundá-lo, com a equivocada política de incentivo agrícola, correspondente a apenas 1% do PIB do Estado, em 1975.
A construção dos distritos industriais na administração de Carlos Lacerda e Negrão de Lima também pode ser lida como equivocada, como o faz Mauro Osório (2005). O economista a interpreta como “desvinculada” da história da região e “mimética” a uma lógica nacional. O resultado é um cenário de inorganicidade e descaraterização da economia regional, que sempre funcionou como centro econômico, político e cultural.
O processo de desidratação da economia da região seria mascarado pelo chamado “milagre econômico” dos anos 1970 e escancarado pela crise fiscal dos anos 1980, que diminuiu drasticamente os investimentos do governo federal na região.
“A volta do filho pródigo ao lar paterno”
Anos após a “fuga” do governo federal da cidade, o Rio continua a possuir mais servidores federais que o próprio Distrito Federal, superando até mesmo seus servidores estaduais — tem mais servidor federal no Rio do que em Minas Gerais e São Paulo juntos. Dos órgãos federais e empresas públicas, ⅓ permanece na região da Guanabara.
Segundo o professor Christian Lynch, “parece ter havido uma lógica no regime militar: deixar no Rio tudo que dependida da presença da sociedade civil, como órgãos de pesquisa, ensino, cultura e empresas públicas. Todos os órgãos decisórios da alta administração, ao contrário, deveriam estar em segurança, longe da sociedade civil e da população, em Brasília” (LYNCH, 2017).
Só em 2016, ano em que a cidade do Rio de Janeiro sediou os Jogos Olímpicos, Brasília recebeu da União o equivalente a todo orçamento da cidade do Rio de Janeiro. Na prática, o governo federal permanece utilizando o Rio de Janeiro sem assumir a responsabilidade de o ter abandonado. O que a cidade precisa é apenas formalizar essa presença, como sugere Lynch (2017).
Transferir o Congresso Nacional e o Executivo para a cidade do Rio, além de devolver o principal indutor de sua economia, fortaleceria a independência dos Poderes da República, garantindo uma ilha de independência ao judiciário, bem longe das pressões populares, assim como aproximaria o povo de seus governantes.
Como resumiu o governador Carlos Lacerda — o primeiro governante eleito diretamente pelo povo carioca, em 1960 — , em seu discurso de lançamento de campanha ao governo da Guanabara: “pensaram que nos abandonando interiorizavam a civilização, mas foi aqui que a deixaram. Porque somos a síntese do Brasil, porque somos a porta do Brasil para o mundo, e somos, do mundo, a vera imagem que ele faz de nós”.
“A volta do filho pródigo ao lar paterno”, como ficou conhecida a forçosa fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro em 1975, a bem da verdade, bem que poderia se referir ao retorno da alta administração pública ao seu verdadeiro lar paterno, a cidade do Rio de Janeiro.
Sobre o autor: Guilherme Pires de Mello é jornalista e mestrando em Ciência Política, com especialização em Política e Sociedade pelo Iesp-Uerj e Administração Pública pela FGV-Rio.
Referências
LYNCH, Christian Edward Cyril. Questão de Urgência Nacional: O Rio como 2o Distrito Federal. Insight Inteligência, ano XIX, n. 76, p. 19–42, 2017.
LYNCH, Christian Edward Cyril. “A multidão é louca, a multidão é mulher”: a demofobia oligárquico-federativa da Primeira República e o tema da mudança da capital. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, Rio de Janeiro, v.20, n.4, out.-dez. 2013, p.1491–1514.
OSÓRIO, Mauro; VERSIANI, Maria Helena. História de Capitalidade do Rio de Janeiro. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, n. 7, p. 75–90, 2015.
OSÓRIO, Mauro. Rio nacional Rio local: mitos e visões da crise carioca e fluminense. Senac, Rio de Janeiro, 2005.
SOBRAL, Bruno Leonardo Barth. A desindustrialização nacional e os desafios para pensar o protagonismo do Rio de Janeiro. Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2013.